Filme que mescla ficção e realidade entra em cartaz hoje no país, com o intuito de discriminalizar os movimentos sociais e pautar um problema que afeta milhares de pessoas no país e no mundo
Por Géssica Brandino
Prédios abandonados na região central de São Paulo, com bandeiras de diversos movimentos penduradas nas janelas. Ainda que a cena já tenha sido capturada pelo olhar de milhares de pessoas que circulam diariamente pelas ruas da capital, há nesses espaços uma luta que chega às telas do cinema: o direito à moradia digna. “Era o Hotel Cambridge”, da diretora Eliane Caffé, entra em cartaz com a tarefa de mostrar pela ficção a luta que une brasileiros e refugiados num cotidiano real.
“Hoje a questão da moradia predomina no mundo inteiro como o problema que caracteriza talvez o maior conflito que vamos viver nesse século, com o êxodo das pessoas para as grandes cidades, primeiro porque esse crescimento de fluxo chega muito mais rápido que qualquer plano de organização e construção e, o mais grave de tudo, é que pelo fato do nosso sistema político ser muito calcado na especularização imobiliária, não existe a preocupação de se fazer políticas públicas para lidar com esse problema. A tendência é que isso fique cada vez pior e a importância do filme está em tornar visível e conscientizar as pessoas de que existe esse problema”, destaca a cineasta Eliane Caffé.
O cenário que dá nome ao filme era um antigo hotel, localizado na Avenida 9 de Julho e que se tornou ponto de despejo de lixo e focos de dengue, até ser ocupado em novembro de 2012 pela Frente de Luta por Moradia (FLM). Sob a coordenação do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), hoje vivem no edifício 170 famílias brasileiras, imigrantes e refugiadas, com histórias diversas, algumas vindas de áreas de risco, outras que moravam de favor ou foram despejadas pela impossibilidade de pagar alugueis cada vez mais altos. Por meio do movimento de ocupação, elas lutam por políticas públicas de moradia que lhes permitam realizar o sonho de ter o próprio lar. Ao mesmo tempo, essas pessoas se deparam com a agressividade da polícia nos atos de reintegração de posse, denúncia que aparece no filme por meio de imagens cedidas por jornalistas que documentaram uma das ações da tropa de choque no centro da capital paulista.
Relação de troca
O que o público verá nos cinemas é resultado de um trabalho de convivência que transformou a narrativa do filme. Inicialmente, a proposta do roteiro era contar a história de um refugiado congolês na cidade, explica a co-roteirista do filme, Inês Figueiró. “À medida que visitamos todas as ocupações, chegando ao Cambridge, a gente começou a ver que a ideia era muito maior. Começamos a conhecer aquele universo por meio de oficinas semanais de dramaturgia com as crianças e com os adultos. A partir do que vivenciamos ao longo de meses, chegamos ao roteiro final”.
O trabalho da equipe na ocupação continuou mesmo após as gravações para o filme e deixou legados. A partir dos encontros realizados aos domingos, os refugiados e imigrantes que vivem nas ocupações passaram a se reunir e debater sobre as dificuldades vivenciadas ao chegar na cidade. A partir daí foi criado o GRIST, Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto. Para Eliane Caffé, “Uma das grandes contribuições foi a formação desse vínculo entre os refugiados e o movimento para debaterem o que há de comum entre eles, que é a pauta da moradia”.
Além das oficinas, alunos de arquitetura da Escola da Cidade desenvolveram melhorias estruturais no prédio e trabalharam na direção de arte e cenografia do longa, sob a coordenação da professora, arquiteta e diretora de arte do filme, Carla Caffé. O projeto foi registrado no livro em história em quadrinhos “Era o Hotel Cambridge: arquitetura, cinema e educação”, que foi lançado na ocasião da pré-estreia do filme em São Paulo, na última segunda-feira.
“Toda a direção de arte foi feita para ficar depois na ocupação e os cenários foram feitos para equipar as áreas comuns do edifício. Foi uma experiência muito rica no sentido de ampliar e extrapolar os muros da escola. Esse deslocamento da sala de aula para o interior do Cambridge foi uma experiência inesquecível para os alunos, que de fato entenderam corporalmente o que é um movimento de luta por moradia, como é o cotidiano e quem são essas pessoas, trabalhadores de baixa renda que querem ter direito à moradia dentro da cidade”.
A experiência junto ao movimento também foi transformadora para a arquiteta, que destaca que as duas obras foram pensadas a partir da ideia de participação e como contrapartida para o movimento.
“Tanto o livro como filme tentam descriminalizar os movimentos de moradia. Eles ocupam para mostrar ao poder público quantos espaços abandonados e ilegais existem no centro da cidade de São Paulo. Se a gente entender a moradia como uma questão estrutural e que mexe com muitas coisas invisíveis, com a mobilidade, os mananciais da cidade e que afeta todos aqueles que são marginalizados pelo sistema, vamos perceber que não existe diferença entre o nordestino, o trabalhador sem teto, o sírio, o palestino e o congolês. São todos expatriados dos próprios direitos. Pessoas que são a outra ponta do explorador. Vivemos essa realidade a muitos anos e a gente precisa despertar”.
Coordenadora geral do MSTC, Carmen Silva, conta que a equipe participou das reuniões, assembleias e atos do movimento, sempre em diálogo com os moradores. “Isso criou uma cumplicidade, uma relação de confiança e, nosso receio de que eles fossem embora quando tudo terminasse, não aconteceu, porque eles ficaram. Nós conquistamos verdadeiramente ativistas”.
Na tela, Carmen interpreta a própria história, organizando assembleias com os moradores, orientando como proceder perante a justiça e iniciando um novo processo de ocupação. “Ver a luta da minha vida na tela do cinema me deu um estalo. Apesar de viver aquilo no dia a dia, a primeira vez que vi, levei um susto, pensando como fomos capazes de fazer isso”, revela.
Morar no refúgio
Vários integrantes do movimento fazem parte do elenco do filme, contracenando com os atores Zé Dumont, Suely Franco e Paulo Américo. As histórias de refugiados da República Democrática do Congo, Palestina e Sírios aparecem em cenas que mostram o contato com a família pela internet, a interação com os brasileiros e os conflitos que obrigaram a deixar o país de origem, com fragmentos dos documentários Blood in the mobile, de Frank Piasecki Poulsen, que expõe a relação entre a guerra no Congo e a extração de minério, e A chave da casa, de Paschoal Samora e Stela Grisotti, sobre a saga de refugiados palestinos que saíram de um campo de refugiados no Iraque para serem reassentados em cidades brasileiras.
Guylain Mukendi era professor de direito Fiscal em Kananga, na República Democrática do Congo e buscou refúgio no Brasil em 2013. Ele conta que conheceu a diretora Eliane Caffé numa reunião da Frente de Luta por Moradia e que aprendeu algo novo com as gravações do filme. “O primeiro dia foi um pouco tímido, depois fui aprendendo como ficar diante da câmera”, relembra.
No filme, ele interpreta o personagem Gandu, que vive um romance com uma brasileira. Em uma das cenas, ele explica para a jovem as diferenças culturais de seu país, em que homens e mulheres trocam presentes para demonstrar o interesse em iniciar um relacionamento. “Na época dos meus avós, você não tinha muito contato com as pessoas com que você se relaciona. Lá você só dá um beijo quando está dentro de casa, no quarto”, explica Guylain, que também ajudou a fazer as adaptações no texto do personagem.
Sobre moradia, ele relata que essa é uma das dificuldades enfrentadas por refugiados na cidade. “O mais difícil é encontrar uma casa para morar. Mesmo tendo dinheiro, você chega na imobiliária e é tanta burocracia, que você não consegue. Tem a barreira da língua e como você que é recém chegado no Brasil vai conseguir fiador? É muito difícil”.
Carmen conta que há quem olhe com desconfiança para os refugiados que chegam em busca de uma vaga nas ocupações, mas enfatiza que o estatuto do movimento não faz qualquer discriminação e que é preciso entender que todos são igualmente prejudicados pela falta de políticas públicas. “Eu sempre digo e afirmo que todos somos refugiados, brasileiros ou não, de políticas públicas. Enquanto o Brasil tratar os cidadãos de forma elitista e não por igual, sempre seremos refugiados, mas o filme me trouxe uma compreensão melhor sobre o refúgio, o aspecto mais humano de como tratar essas pessoas. A diferença precisa ser entendida e não cobrada”.
“Era o Hotel Cambridge” foi eleito pelo júri popular como melhor filme brasileiro no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Em 2015, recebeu o Prêmio da Indústria no Festival de San Sebastián e o Troféu Hubert Buls Fund no Festival de Rotterdam. A expectativa da diretora Eliane Caffé é que a mensagem do filme possa chegar a mais pessoas a partir de hoje. “Espero que o filme consiga ficar em cartaz durante um tempo para dar visibilidade a um problema tão recorrente que são as ocupações, para que as pessoas possam ter outros elementos para pensar, que não só a narrativa oficial que vem da mídia, mas aquela foi construída de dentro pra fora e espero que ajude a diminuir essa carga de preconceito que existe”.
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