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Foto do escritorOcupação Cambridge

Carmen Silva: Líder do MSTC conversa sobre o movimento

Chegou em São Paulo em 1994 sozinha, deixou seus oito filhos em Salvador (Bahia) com seu pai e suas tias. A ideia era conseguir um bom emprego e trazê-los para viver com ela quando a situação financeira estivesse melhor. Inicialmente ficou com alguns familiares da Bahia que já residiam na capital paulista, mas foi por pouco tempo. Como ela mesma diz: “Mesmo com pessoas aqui, é diferente quando você vem para um lugar diferente de sua origem”. Esse foi o início da chegada de Carmen Silva, líder do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), em São Paulo.

Inicialmente ela passou por situação de rua e albergues públicos. Lá teve contato com o Fórum dos Cortiços. De lá para cá, não parou mais de participar de atividades relacionadas com moradia. Viveu em ocupação até 2003. Seu primeiro trabalho foi com um cargo bem baixo numa corretora de seguros que ficou até abril deste ano e atingiu o de supervisora comercial. “Sai, porque não estava conseguindo conciliar os dois trabalhos dentro do movimento e da corretora. Não se agrada dois senhores. Estava sendo negligente com meu trabalho e isso não é justo “.

Ela tem ensino médio completo e técnico em recursos humanos concluído em Salvador. Depois fez várias formações sobre políticas públicas, empreendedorismo e gestão. Abaixo segue entrevista com Carmen.




Como foi seu primeiro contato com o movimento?

Foi com o movimento do Fórum dos Cortiços. Quando cheguei aqui em São Paulo, fiquei em situação de rua e fui parar num albergue. Lá tinha uma senhora que participava dos mutirões e insistia muito para ir com ela. Um dia resolvi ir e até hoje estou envolvida com o movimento de defesa pela moradia. Participei do Fórum dos Cortiços até final de 2000. Vi que a proposta deles não era o que pregavam na teoria. Em 2000, nós fundamos o Movimento dos Sem Teto do Centro e em 2001 criamos a Frente de Luta pela Moradia. Sou uma das fundadoras do MSTC e da FLM. Ocupei pela primeira vez em 1997, atuava como coordenadora interna e a partir daí comecei a participar de vários seminários e de todas as audiências. Desenvolvemos um trabalho de formação com grupos de base para agregar outras pessoas que passam pelas mesmas necessidades. Nessa formação, explicamos os direitos dos cidadãos especificamente nos artigos 5º e 6º da Constituição relacionado com o direito à moradia e as diretrizes do movimento. Algumas pessoas possuem uma ideia equivocada e acham que vamos dar casas e não é isso. Primeiro há um trabalho de base para as pessoas entenderem nosso trabalho e o que elas precisam fazer, os programas habitacionais existentes e apresentar como a gente se auto-organiza como movimento social. Apesar de sermos um movimento social, trabalhamos junto com o poder público e com o Estado. Não podemos nos distanciar das diretrizes públicas e participamos das atividades do Conselho Municipal da Habitação.


Atualmente você participa de quais conselhos?

Eu sou conselheira municipal de habitação, conselheira estadual e conselheira para políticas públicas para as mulheres e conselheira gestora das quadras 37 e 38 da Luz, que abrangem a região da Cracolândia.


Como o movimento identifica imóveis para serem ocupados?

Não tem esse estigma de tempo de abandono. Ocupamos imóveis abandonados que estão devendo o IPTU. Não ocupamos prédios com destinação definitiva nem privados que passaram por reformas. Isso nós não fazemos.


Como o movimento forma e engaja as pessoas ao grupo de trabalho de base?

Vamos formando a base para quando chegar o momento da ocupação. A ocupação em si é a principal forma de luta, nós trabalhamos tanto para entrar no espaço meia noite e sair meia noite e um, quanto ocupar para morar para atender a necessidade de várias famílias. Elas vão conosco, porque não têm onde morar, não têm condições de pagar um aluguel caro. Eles recebem salários muito baixos. Por isso ocupamos, tanto para denunciar a falta de moradia efetiva quanto a especulação imobiliária.


Hoje em São Paulo quantos imóveis estão ocupados?

Na Frente de Luta temos uns 20 prédios ocupados e uns terrenos na zona leste, na zona norte e sul.


Nesse trabalho de base, quais são os critérios para avaliar quem vai no momento da ocupação?

Sabemos que muitas vezes pode ter polícia e ocorrer uma situação mais violenta. Nosso critério principal dentro do movimento é a participação. Seja um ato, uma caminhada, tem que ter participação. As famílias dão apoio e muitas vezes o critério é um da família ir para a ocupação, no caso dos adultos. Sabemos que vai ter atrito. Se a coisa fosse fácil, não precisaríamos ocupar. Agora nem sempre vamos entrar em confronto com a polícia. Quem tem arma e poder é a polícia, não somos nós.


No dia a dia da ocupação, você comentou que tem os mediadores que ajudam na conversa na negociação dos conflitos, como é isso?

Temos um conjunto de regras no nosso regimento interno e uma diretoria colegiada para nos ajudar. Cada andar dos edifícios temos mediadores, uma posição que de dois em dois meses muda e isso possibilita várias pessoas passarem por esse cargo. Elas precisam dialogar sem mandar nem gritar com outros moradores. Tem gente que acha que mediar é dar ordem aos outros. Nós temos atividades coletivas para limpar e organizar os espaços. Logo quando ocupamos todas as tarefas são coletivas, de manutenção e mão de obra. Dentro das ocupações, temos as reuniões de mediadores e assembleias com todos os moradores. Todas as decisões são feitas em coletivo. A periodicidade desses encontros depende da época e das demandas.




Quais são os conflitos mais complicados no dia a dia?

Brigas de casais, pessoas que não querem fazer nada, pais que deixem as crianças sozinhas nas casas e falta de limpeza nos apartamentos. No caso da sujeira, invade a casa dos outros. Em ocupação nós recebemos muitas visitas, principalmente do Ministério Público, porque tem uma regra deles que avaliam algumas ocupações como áreas de risco. Nós ensinamos ao povo que tem que ter qualidade de vida. A limpeza ou a falta dela interfere na minha também.


Como foi esse processo de viver em uma ocupação e ser uma liderança?

Foi com a ocupação que tive possibilidade de tudo isso. Hoje meus filhos trabalham. Em 2003 sai da ocupação com a promessa de ir para um prédio reformado em 2004. Sai dali com uma verba emergencial. O prédio até agora não saiu e esse ano pago aluguel. Não achei justo voltar para aonde estava, porque tinha condições de pagar.


Em situações de conflito, como você lida?

Seguimos o regimento mesmo. Todas as famílias conhecem todos os itens desse documento. Fazemos mediação nas famílias e damos advertência dependendo do acontecimento. No terceiro, pedimos para a pessoa se retirar.


Existe um tempo limite para a pessoa ficar na ocupação?

Ela já entrou sabendo que terá que ir embora. A ocupação tem um prazo, até porque queremos a reintegração de posse. Nós ajudamos a negociar com os três níveis para conseguir consolidar a habitação definitiva para inserir as famílias nos programas habitacionais. Agora para ela ser inserida precisa ter participação, quando sai alguma gleba para ser indicada. Ela tem que fazer por onde. Nosso critério sempre é participação. No Hotel Cambridge, temos 174 famílias, mas vamos desativar e algumas famílias de lá vão vir para cá, vamos colocar umas 200 famílias aqui (edifício antigo do INSS localizado na Nove de Julho). A capacidade é de 131 unidades, mas temos um projeto para adaptar e abrir mais espaços. Cada apartamento possui mais de 30m².


Para finalizar nossa conversa, qual a importância de oferecer uma moradia mesmo que provisória? Como isso impacta o cidadão marginalizado?

A moradia é o seio de tudo. A pessoa pode andar o dia inteiro. Mas em certo momento ela precisa parar em algum lugar para descansar seu corpo. Nós, do movimento, não vemos a moradia simplesmente como uma caixa, tem que vir aquecida de outras coisas. Esse público tão arrebentado precisa ser ressocializado. As pessoas chegam sem documento, não dão importância para isso. Estamos preparando para financiar uma casa, por mais que seja um financiamento social tem um custo. Encontramos ainda pessoas que não estão acostumadas a pagar nada, acham coisas de graça, então, as reeducamos.


Qual a importância dos movimentos que dão apoio para esse público?

Não orientamos somente. Temos algumas pesquisas realizadas por faculdades estrangeiras como KU Leuven – University of Leuven, na Bélgica. Por meio de um projeto chamado Moradia Insurgente*, mostram os impactos que fazemos na vida das pessoas. Elas têm mais tempo para organizar as coisas da vida, como conseguir dar uma comida melhor para seu filho, passear com a família com serenidade, já que não vai pagar o ônus de um aluguel tão alto que suga todo seu salário.  Muitas vezes você paga o aluguel e fica sem comer.


* No início de 2015, houve essa iniciativa em que consistiu num workshop intensivo para mapear as formas insurgentes de arquitetura e urbanismo representadas pelas ocupações na região central de São Paulo. Essa capacitação parte da hipótese de que as ocupações são um tipo radical de urbanismo transformando o centro de baixo para cima. Foi uma forma de engajar arquitetos para a luta de direito à cidade. Para isso, os alunos trabalharam em conjunto com as pessoas da FLM, MSTC e outros ocupantes. Ocorreu na biblioteca da ocupação do Hotel Cambridge, com uma equipe internacional e interdisciplinar de pesquisadores. No final houve uma exposição e seminário realizado dentro dessa ocupação no centro da cidade de São Paulo. Para saber mais, acesse aqui:https://insurgentculturesinclusiveurbanisms.com/

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